Ângulos mortos e outras perspectivas

A 2ª edição da revista CiNEMAS decorre em agosto, sendo lançada em simultaneidade com a realização do MDOC- Festival Internacional de Documentário de Melgaço, uma iniciativa da Associação AO NORTE em parceria com o Município de Melgaço.

Tendo em conta esta confluência, acolhemos um caderno especial com textos que conversam com os conteúdos desta edição do Festival. Assim, inauguramos mais uma extensão desta revista, desta vez acolhendo contribuições de quem se cruza em Melgaço. Prepararemos entrevistas, reflexões de cineastas e produtores, provocações de investigadores e demais ativistas visitantes, assim como propostas de análise de entre a rede de colegas e amigos que caracteriza o campo de ação da AO NORTE.

O processo de montagem desta edição confronta-se com algumas sinergias particularmente interessantes entre os temas abordados pelo caderno MDOC e as demais áreas de reflexão que compõe os artigos reunidos nos cadernos restantes. Há uma preocupação transversal, e que diz respeito à relação da imagem com a construção de narrativas, como essa relação se articula, e de que forma os diferentes desdobramentos do estudo da imagem interagem com ideias de representação, reprodução e interpretação.

Margarida Brito Alves abre esta edição com um texto de reflexão, e que nos desafia perguntando-se “de que forma as condições específicas de visibilidade que as artes nos oferecem têm, ou não, a capacidade de transformar a nossa relação não apenas com as imagens, mas também com a realidade”. E é da relação com o eu, com a auto-representação e o discurso reflexivo, da emergência historicamente recente das narrativas autobiográficas – massificadas na expressão audiovisual contemporânea – e da sua relação com a politização dos discursos subjetivos, nomeadamente pela via do feminismo, que trata o primeiro texto do caderno MDOC, autorado por José da Silva Ribeiro e Manoela dos Anjos Rodrigues. Por sua vez, com Jorge Campos viajamos ao Cinema Vérité, o cinema que aborda o real, também apodado de cinema direto, e que, pela sua própria arma, vem desaguar numa crítica radical à representação do real e do verdadeiro pelo meio do cinema, desvendando-se um campo de debates profundos e tumultuosos que levam à própria negação desta forma de realizar cinema.

É com este mote que damos lugar aos cadernos aqui reunidos. No Caderno A, dedicado ao tema Imagens e Arquivos, reunimos artigos que questionam a representação pela imagem, seja pela sua exploração enquanto arquivo de representação histórica, seja pela sua aplicação na preservação patrimonial e enquanto metodologia de pesquisa. O Caderno B leva-nos à escola, e desdobra-se em vias analíticas que exaltam a riqueza deste cruzamento de campos entre o estudo do cinema e documentário, e a sua aplicação em contexto escolar e pedagógico. No Caderno C, finalmente, dedicamo-nos à análise fílmica, desta vez pela leitura crítica do olhar e da narrativa, explorando temas de representação e a sua relação com o posicionamento social e político do autor.

Se o texto convidado desta edição nos interpela para as diferentes visibilidades oferecidas pelas artes, e para as relações que estas nos levam a formar com determinados entendimentos do real, observamos também que o desafio é tornar visíveis todos os ângulos mortos, tudo o que fica fora de campo, e que requer esforço e intencionalidade para se destacar enquanto objeto pensável. As contribuições aqui reunidas confluem para essa forte intenção de provocar um desvio no olhar, evidenciando que, se as representações do real são internamente fraturadas, e se as autobiografias são subjetivadas e subjetivantes, tal nos é tornado aparente apenas mediante um retorno reflexivo. Talvez seja esta perturbação, inefável, que nos leve a algum terreno de verdade intuída, ainda que deslocalizada para um não presente eternamente fora do nosso campo de visão.